terça-feira, 22 de julho de 2008

Não... Foi assim que começou...

Foi a primeira vez que decidiu vender um livro. Ficara tão chocada ao ouvir a proposta que quase acusara o homem do sebo de maníaco desalmado. Seus livros, afinal, eram verdadeiros tesouros tratados como filhos. Cada um tinha com ela um envolvimento tão profundo que parecia de fato ter vida. Não que fosse uma madame Bovary, mas gostava de se perder nas palavras e sentir todas as coisas que sua vida sem brilho não permitia. Mergulhava nas personagens e entrava em êxtase a cada página virada, chorava com seu sofrimento e sonhava com o que ainda estava por vir. Vivia cada história até a última letra, quando, exausta, recuperava a própria identidade.
Mas o homem afinal tinha razão. Eram apenas livros, e com pouco espaço em casa e sem dinheiro para comprar outros, a solução era vender. Colocou-os sobre a cama e ficou relembrando suas histórias, um a um, como quisesse se despedir.
Foi quando viu aquela capa dura vermelha, com as letras douradas do nome já desgastadas. Havia muito tempo que o lera, mas podia lembrar-se de cada passagem e de cada emoção sentida. Lembrava de quantas lágrimas e sorrisos tinha derramado naquelas páginas. Era como se tivesse vivido tudo aquilo que jamais acontecera, como se fosse a sua própria história, ainda desconhecida, escrita por outras mãos.
Então imaginou quem iria comprá-lo. Seria digno de ler suas linhas? Iria sentir o mesmo? Era tão seu o livro que poderia tê-lo escrito, tanto que sentia uma angústia enorme em partilhá-lo. Pensou num jeito de deixar sua marca, para que esse alguém jamais a esquecesse. Era dela aquela história. Eram as suas palavras. Não poderia assiná-lo, pensou. Não se escreve num livro, devia até ser pecado. Não mudaria sua capa nem deixaria um papel. A marca teria de ser mais profunda, porém, mais sutil. Sutil...como um perfume que fica no ar.
Pegou seu perfume favorito e borrifou nas páginas amareladas. Sentia um prazer infantil em marcá-lo, quase como uma criança que descobre algo proibido. Colocou-o junto dos outros e os levou para a loja, com um sorriso no rosto. E quase não conseguiu dormir, imaginando quem seria o novo dono.

Foi assim que começou...

Na medida em que ia revirando as páginas daquele livro, onde a cada palavra lida ele tentava se conformar que de fato nada absorvia, mais sua atenção se dispersava para uma fantasia momentânea. A verdade é que um perfume o encantava a cada sopro que o livro dava ao virar mais uma página de suas histórias. Nunca tinha sentido tal encanto ao simples fato do virar de folhas. Porém dessa vez fora diferente... O cheiro habitual do velho livro do sebo se misturava com um aroma feminino que até então lhe era bem estanho.
Lá estava o homem, a meia luz em sua sala, adentrando a madrugada em sua fantasia. Ia escrevendo uma nova história em cima de páginas que para ele mais nada tinham sentido. Seus sentidos iam se invertendo aos poucos: A visão, que antes lia atentamente as palavras, se confundiam com o seu olfato, que o servia com o deleite do cheiro. Em sua mente, a parte responsável pela concretização de palavras em novos conhecimentos e entendimentos, dava espaço para uma abstração e a desconstrução de tudo que já havia lido.
Ao folhear do livro, a imagem da mulher ia se idealizando de acordo com o perfume que sentia. Ficava a imaginar quando a mulher havia lido o mesmo livro que ele. Imaginava os leves dedos da moça virando as páginas do livro num movimento tão suave que nem mesmo o vento imitava. Fantasiava sobre uma mulher que, assim como ele, adentrava o silêncio da madrugada entretida em narrações e romances, e que, ao esgotar de sua resistência contra o sono, fechava seus olhos e punha-se a sonhar com as historias lidas. Acordava no dia seguinte ainda com o peso do livro, também adormecido, em cima de seu peito. E foi o que ele fez... Adormeceu e pôs-se a sonhar com sua mais nova musa romântica.
Ao despertar da manhã seguinte, mal conseguia pensar em outra coisa que não fosse a mulher. Era uma imagem tão concretamente abstrata que o perturbava a cada vez que olhava a capa desgastada do livro. Era angustiante saber que ela não existia. Pior ainda era ter a esperança do contrário.

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